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2004/07/30

Momentos: de ser vegetal... 

Irrita-me a felicidade de todos estes homens que não sabem que são infelizes. A sua vida humana é cheia de tudo quanto constituiria uma série de angústias para uma sensibilidade verdadeira. Mas, como a sua verdadeira vida é vegetativa, o que sofrem passa por eles sem lhes tocar na alma, e vivem uma vida que se pode comparar somente à de um homem com dor de dentes que houvesse recebido uma fortuna – a fortuna autêntica de estar vivendo sem dar por isso, o maior dom que os deuses concedem, porque é o dom de lhes ser semelhante, superior como eles (ainda que de outro modo) à alegria e à dor.

Por isto, contudo, os amo a todos. Meus queridos vegetais!

Bernardo Soares

2004/07/29

Música: Em Paredes, Nós 

Toco desde os meus 9 anos. O meu pai deu-me, um dia, o cheiro do fado. Desgraçou-me, no melhor dos caminhos. Deu-me o melhor dos companheiros, a música. Cresci a ouvir de tudo, mas o fado e as guitarras eram (e são) o pano de fundo onde desenvolvi a minha existência.

Os Paredes (o pai, Artur, e o filho, Carlos) foram–me "apresentados" bem cedo. Nunca mais os deixei ir embora. A cada curvar por cima da guitarra, a cada movimento de fúria sobre as cordas, a cada gesto de carinho de Carlos Paredes, eu tremo.

Não há dois, mas eu vivi no tempo de um. Quem quer que tenha sido que o levou, ficou mais rico. O destino é muito egoísta. Costumavam dizer os ciganos e eu, neste caso, subscrevo "quem pariu as tuas mãos, devia parir todos os dias". Cru, mas cheio de sentimento. Como ele.

2004/07/27

Livros: Viagens pelos caminhos da beleza 

Entrei na livraria da Taschen em Paris, em pleno Quartier Latin, à procura de um livro que me acompanhasse e guiasse nos momentos em que sinto o impulso para conhecer mais, ver mais, saborear mais as cambiantes da pintura. Queria um livro que fosse mais um convite do que uma enciclopédia de saberes triturados.

Dei uma volta à livraria, tirei alguns livros das estantes, mas nada do que realmente procurava. Quando já ia a sair, olho para uma mesa com livros e encontro Les Maîtres de la Peinture Occidentale. Começei a folheá-lo e pareceu-me que entrava na vertigem das cores. Desde o período gótico até ao século XX, quadro a quadro, pintor a pintor, século a século... Ignorei o peso do volume e adoptei-o.

Está aqui agora à minha frente, sobre a mesa baixa da sala. Um novo companheiro para as viagens que a noite convida. Viagens pelos caminhos da beleza.

2004/07/25

Segundos... 

Conhecemos tanto hoje em dia, mas sabemos tão pouco sobre nós próprios.


Nietzsche

2004/07/23

Momentos: Guitarra (Carlos Paredes) 

A palavra por dentro da guitarra
a guitarra por dentro da palavra.
Ou talvez esta mão que se desgarra
(com garra com garra)
esta mão que nos busca e nos agarra
e nos rasga e lavra
com seu fio de mágoa e cimitarra.

Asa e navalha. E campo de Batalha.
E nau charrua e praça e rua.
(E também lua e também lua).
Pode ser fogo pode ser vento
(ou só lamento ou só lamento).

Esta mão de meseta
voltada para o mar
esta garra por dentro da tristeza.
Ei-la a voar ei-la a subir
ei-la a voltar de Alcácer Quibir.

Ó mão cigarra
mão cigana
guitarra guitarra
lusitana.

Manuel Alegre

2004/07/21

Música: Deidda interpreta Pessoa  

«Outra vez te revejo – Lisboa e Tejo e todo –,
Transeunte inútil de ti e de mim.
Estrangeiro aqui como em toda a parte,
Casual na vida como na alma,
Fantasma a errar em salas de recordações,
Ao ruído dos ratos e das tábuas que rangem
No castelo maldito de ter que viver.»
[Fernando Pessoa – Canção Para Lisboa]

É um dos 13 textos de Pessoa que este senhor resolveu musicar. O inquilino da Rua Coelho da Rocha nº 16, 1º, deixou este e muitos outros pedaços de si aos outros. Os heterónimos são a suprema magia de quem se soube multiplicar e deu, deste modo, ainda mais de si. A paixão por Lisboa (a qual partilho) transporta-nos para uma cidade que devemos saber catapultar, ou seja, uma grande metrópole, onde as coisas se decidem, onde as coisas chegam, o coração de um país, mas ao mesmo tempo um centro de vida humana, onde vivemos, rimos, choramos, casamos, morremos...

Deidda e os seus convidados não só dão música aos poemas como os dizem por cima dessa música. E não é um dizer qualquer, que bonito é ouvir Pessoa em Italiano.

2004/07/20

Música: Angela Gheorghiu 

Estava, esta sexta feira, na luta desigual entre o comando da TV, o sono e o sair do sofá (sim! é um complot da nossa sala contra nós!). Eis se não quando, ao fim do enésimo “zaping”, parei no segundo canal (como se dizia no meu tempo). Não me perguntem as horas, sei que era tarde. Era o final de um espectáculo em Londres e de repente surge do meio do orquestra esta senhora, Angela Gheorghiu, a cantar um conjunto de árias de ópera. Hoje sei que já canta desde 94 sendo que o primeiro grande reconhecimento pela crítica veio em 96. Tem um tom que nos trás à memória a preciosa Callas (A Divina), domina técnica, projecção, tem aquilo a que se chama "coloratura" na voz.

Meus amigos, no sábado, quando acordei, já estava na FNAC à procura dela no meio das estantes de CDs... Comprei uma heresia para um verdadeiro conhecedor de ópera, um concerto ao vivo em Convent Garden (2002). E como gostei de cada momento que ela me proporcionou, o canto das sereias existe! Agora me lembro que não olhei para a parte debaixo do vestido na TV, se calhar...

2004/07/19

Segundos... 

Pelos nossos trabalhos conhecer-nos-emos a nós próprios.


Hegel

2004/07/18

Música: Bebo Cigala 

Parece um só nome, mas são duas pessoas. Soa a um, mas são dois artistas. É a fusão mais apaixonante que ouvi nos últimos tempos. Entre um pianista cubano e um "cantador" de Flamenco. Bebo Valdés e Diego Cigala.

São várias as imagens que me assaltam ao ver e ouvir este DVD. O domínio da técnica, a paixão de quem canta, a qualidade dos músicos que os acompanham e toda a entrega e paixão de quem faz um disco destes. Esta é uma das provas de que fazer amor não tem que ser obrigatoriamente algo físico...

Para quem gosta do género, deixo um recado: ouçam vestidos com uma t-shirt ou alguma peça de roupa que vos permita ver os vossos pelos e a vossa pele a reagir... Até assusta! Equacionem os seguintes dados: Tom Jobim, cigano e Cuba. O resultado está em CD ou em DVD.

2004/07/17

Música: Um françês em Kensington 

Já passou mais de uma semana desde que descemos as escadas rolantes que conduzem a uma loja de discos imensa, capaz de esconder as maiores surpresas. Uma água para o caminho, a mochila às costas e milhares de discos à espera. Uns, discretamente guardados no seu sítio nas prateleiras; outros, expostos e prontos a serem escutados, como se nos chamassem. Perco-me entre eles...

Chamas-me. Sorris e passas-me os auscultadores. Fico curioso... Coloco-os e ouço uma voz que canta em francês, acompanhada pela sonoridade inconfundível de um cravo. Tu partes para outras descobertas e eu fico, cativado por aquele som. Deixo o CD seguir... Um piano, violinos... A voz que parece fazer pouco mais do que falar, mas que desenha melodias simples e belas. Olho para o título do disco: Kensington Square, o autor é Vincent Delerm e este é o seu segundo álbum. Fascinante...

2004/07/14

Segundos... 

O cúmulo da sapiência é gostar do outro como ele é.


José Gameiro - Psiquiatra

2004/07/13

Entre-aspas: O passageiro 

«Estou na plataforma do eléctrico e sinto-me completamente inseguro em relação à minha posição neste mundo, nesta cidade, na minha família. Nem sequer por aproximação seria capaz de enunciar as reivindicações que podia com razão avançar numa qualquer direcção. Sou incapaz de defender o facto de estar nesta plataforma, de me agarrar a esta tira de cabestal, de me deixar levar por este transporte, de as pessoas se afastarem do eléctrico ou caminharem calmamente ou pararem em frente às montras. - Não que alguém exija isso de mim, mas não interessa.

O eléctrico aproxima-se de uma paragem, uma rapariga coloca-se junto aos degraus preparada para sair. Surge-me muito nítida, como se tivesse tocado nela. Está vestida de preto, as pregas da saia quase não se mexem, a camisa é apertada e tem um colarinho de renda em malha branca e fina, a mão esquerda está espalmada contra a parede, com a direita segura e somprinha posada no segundo degrau a contar de cima. A cara é morena. o nariz, um pouco apertado para os lados, acaba redondo e largo. Tem um cabelo castanho farto e na têmpora direita uns cabelinhos soltos. Apesar de ter a pequena orelha quase encostada à cabeça, vejo por inteiro, dado que estou junto a ela, a parte de trás da orelha direita e a sombra na raiz.

Perguntei-me na altura: Como é possível que ela não fique impressionada consigo própria, que mantenha a boca fechada e não diga nada deste género?»

In Contos, 1.º volume, Franz Kafka

2004/07/11

Música: Redescobertas... 

Acho que já não ouvia nada de Renaud há mais de dez anos... Redescobri-o esta sexta-feira quando reencontrei o único disco dele que tinha passado pelas minhas mãos, em vinil, durante a minha adolescência: Mistral Gagnant. E redescobri a raiva contida na sua voz quando canta Miss Maggie em "honra" de Margaret Thatcher, quando nos conta a história dos Trois Matelots, três recrutas da marinha francesa, ou quando deixa o seu cansaço com os homens em Fatigué.

E está tudo lá... Renaud continua acutilante como eu o recordava, mas tudo parece passar-se mais depressa, como se o tempo das canções estivesse mais acelerado do que na minha memória e o tempo que passou tivesse tirado os graves que ancoravam as canções nessa memória. Mas as letras continuam lá, as histórias continuam vivas e a redescoberta soube-me bem, com um arrepio de memória.

2004/07/05

Momentos: A harmonia dos sons 

Sente a força da música
Sobre os teus poros
Como uma nova gravidade

Sente o abanar sereno
Do teu corpo
Que treme por dentro

Sente a lonjura por ela trazida
Abandono total
Das coisas vividas há pouco

Sente a dor da impotência
Perante a harmonia dos sons

O teu corpo é só um,
Aquela tristeza que te encerra

Miguel Soares, Vertigem

2004/07/03

Livros: A história do Senhor Sommer 

Parece que foi há tão pouco tempo... Foi um tempo em que a nossa infância dava asas à imaginação. Um momento em que poderíamos ter voado se nos tivéssemos lembrado disso. Um instante em que as árvores à beira do caminho encerravam segredos e um posto transformador de energia era um lugar misterioso. Uma idade em que oferecer um chave de parafusos tem o valor de dar um dos nossos bens mais preciosos. Um tempo cuja voz é mágica, tal como Patrick Süskind nos recorda n'A história do Senhor Sommer.

Mas essa magia não é inocente nem perfeita e esconde os momentos dolorosos que marcam a passagem da infância para a adolescência e da adolescência para a idade adulta. Nesses momentos, somos confrontados com um outro mundo, um mundo estranho, e os senhores Sommer que atravessaram as nossas vidas mostraram-nos que esse mundo existe. É isso que Süskind me lembrou com este livro que se lê de um trago mas que perdura na memória. Porque não consegue parar o Senhor Sommer?

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